Tradução Literária: A Arte Invisível que Conecta Culturas e Transforma Palavras em Pontes

Descubra os desafios, oportunidades e segredos da tradução literária. Entenda como tradutores transformam obras entre idiomas preservando arte, cultura e emoção. Guia completo para curiosos e aspirantes.

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Sebastião Victor Diniz

10/20/202532 min read

Literary Translation: The Invisible Art that Connects Cultures and Turns Words into Bridges
Literary Translation: The Invisible Art that Connects Cultures and Turns Words into Bridges

Imagine ler "Dom Quixote" sem saber espanhol, ou mergulhar no universo de "Harry Potter" sem dominar o inglês. Pense em como seria limitado nosso acesso à literatura mundial se estivéssemos presos apenas às obras escritas em português. A tradução literária é a arte invisível que derruba essas barreiras linguísticas, permitindo que histórias, poemas e ideias atravessem fronteiras e toquem corações em todos os cantos do planeta.

Mas traduzir literatura vai muito além de simplesmente substituir palavras de um idioma por outro. É um trabalho que exige sensibilidade artística, profundo conhecimento cultural e uma dose generosa de criatividade. O tradutor literário é, na verdade, um coautor – responsável por recriar na língua de chegada não apenas o significado, mas também a beleza, o ritmo, o humor e a emoção do texto original.

Neste artigo, vamos explorar os bastidores fascinantes dessa profissão que molda silenciosamente nossa experiência com a literatura mundial. Você vai descobrir os desafios técnicos e criativos que esses profissionais enfrentam diariamente, as oportunidades surpreendentes que o mercado oferece e como a tradução literária tem sido fundamental para conectar culturas e enriquecer as literaturas nacionais ao redor do mundo.

O Que Torna a Tradução Literária Tão Especial?

Mais Que Palavras: A Dimensão Artística da Tradução

A tradução literária ocupa um território único no universo da tradução. Enquanto um tradutor técnico trabalha com manuais, contratos e documentos onde a clareza e a precisão terminológica são absolutas, o tradutor literário lida com a alma da linguagem – aquele espaço mágico onde o modo de dizer é tão importante quanto o que está sendo dito.

Pense em uma frase como "Era uma noite escura e tempestuosa". Simples, certo? Mas agora imagine traduzir isso considerando não apenas o significado literal, mas também o ritmo das palavras, a cadência da frase, as associações culturais que "tempestuosa" evoca em diferentes línguas, e como essa abertura se encaixa no tom geral da obra. De repente, aquelas seis palavras se transformam em um universo de possibilidades e decisões criativas.

A diferença fundamental está no fato de que a literatura não é apenas informação a ser transmitida – é experiência estética a ser recriada. O tradutor literário precisa preservar camadas de significado, ambiguidades intencionais, jogos de palavras, simbolismos e até mesmo a musicalidade do texto original. É um equilíbrio delicado entre fidelidade e criação, entre respeito ao autor e liberdade artística.

O Cenário Brasileiro: Entre Tradução e Criação Original

No Brasil, a tradução literária ocupa uma posição estratégica e, ao mesmo tempo, paradoxal. Aproximadamente 60% das publicações nacionais são traduções, sendo cerca de 75% delas originárias do inglês. Isso significa que mais da metade dos livros que chegam às prateleiras das livrarias brasileiras nasceram em outro idioma e foram recriados em português por tradutores.

Esse número impressionante revela duas realidades importantes. Por um lado, demonstra a abertura do mercado brasileiro para obras estrangeiras e a qualidade dos tradutores nacionais, capazes de trazer para o português desde best-sellers contemporâneos até clássicos da literatura universal. Por outro lado, expõe uma assimetria preocupante: embora o português seja a sexta língua mais falada no mundo, não figura entre as mais traduzidas para o inglês.

Essa desproporção no fluxo de traduções reflete relações de poder cultural e econômico entre países. Enquanto o Brasil consome massivamente literatura produzida em inglês, a literatura brasileira ainda luta por espaço nos mercados internacionais, especialmente no anglófono. Felizmente, esse cenário vem mudando gradualmente, com autores brasileiros contemporâneos ganhando reconhecimento internacional e programas governamentais incentivando a tradução de obras nacionais para outros idiomas.

A Jornada Histórica da Tradução no Brasil

Multilingual books representing literary translation between languages
Multilingual books representing literary translation between languages

Das Origens Coloniais à Era de Ouro

A história da tradução literária no Brasil é tão antiga quanto a própria formação cultural do país. Desde o século XVI, quando os primeiros contatos linguísticos aconteceram durante a colonização portuguesa, a tradução sempre desempenhou papel mediador essencial. Jesuítas traduziam textos religiosos para línguas indígenas, enquanto obras europeias chegavam traduzidas ou eram vertidas localmente para formar o repertório cultural da elite colonial.

No entanto, foi no século XX que a tradução literária brasileira realmente amadureceu e conquistou sua identidade própria. Um marco fundamental foi a influência do movimento da poesia concreta, que colocou a tradução no centro de sua poética. Poetas como Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari não apenas traduziram, mas revolucionaram a teoria e a prática tradutória no Brasil.

Haroldo de Campos, em particular, desenvolveu o conceito de "transcriação" – uma abordagem radical que reconhece a tradução como atividade crítica e criativa de altíssimo nível. Influenciado pela antropofagia modernista de Oswald de Andrade e pelas ideias do poeta norte-americano Ezra Pound, Campos propôs que o tradutor não deveria buscar uma impossível literalidade, mas sim criar um "re-projeto isomórfico" do texto original, recriando na língua de chegada os efeitos estéticos, sonoros e semânticos da obra.

A partir da década de 1990, observou-se uma profissionalização crescente da atividade tradutória no país. Surgiram tradutores com formação acadêmica sólida, muitos com pós-graduação em tradução e bilinguismo literário profundo. Esse amadurecimento gerou o que especialistas consideram uma "era de ouro" da tradução no Brasil, com profissionais altamente capacitados e conscientes de seu papel como coautores dos textos que traduzem.

Os Grandes Debates Teóricos: Como Traduzir Literatura?

a book opened to show a painting of a parrot and a parrot
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Domesticação versus Estrangeirização: O Dilema Fundamental

Imagine que você está traduzindo um romance japonês repleto de referências culturais específicas – cerimônias do chá, festivais tradicionais, formas de tratamento honoríficas complexas. Você tem duas opções principais: pode "domesticar" o texto, adaptando essas referências para equivalentes mais familiares ao leitor brasileiro, ou pode "estrangeirizá-lo", mantendo os elementos originais e aceitando que o leitor precisará de algum esforço adicional para compreendê-los.

Esse é o cerne do debate entre domesticação e estrangeirização, conceitos popularizados pelo teórico norte-americano Lawrence Venuti. A domesticação traz o autor para perto do leitor, tornando o texto fluente e natural na língua de chegada, mas potencialmente apagando sua identidade cultural estrangeira. A estrangeirização, por outro lado, mantém a "estranheza" do original, preservando marcadores culturais e até mesmo estruturas sintáticas que soam diferentes, lembrando constantemente ao leitor que está diante de uma obra vinda de outra cultura.

Essa tensão não é nova. O filósofo alemão Friedrich Schleiermacher já a problematizava no século XIX, afirmando que o tradutor deve escolher entre dois caminhos: "ou deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou deixa o leitor o mais tranquilo possível e faz com que o escritor vá a seu encontro".

Venuti defende a estrangeirização como estratégia ética, especialmente importante para resistir à dominação cultural de países hegemônicos. Quando traduzimos tudo para categorias familiares, corremos o risco de impor nossos valores culturais sobre outros povos, apagando diferenças e perpetuando relações coloniais de poder. No entanto, a realidade da prática tradutória é que nenhuma dessas estratégias pode ser seguida de modo puro e consistente – toda tradução literária contém inevitavelmente uma mistura de domesticação e estrangeirização.

Tradução Literal ou Tradução Livre?

Outro debate fundamental gira em torno da questão: devemos traduzir palavra por palavra ou buscar transmitir o espírito do texto, mesmo que isso signifique se afastar da letra original?

Eugene Nida, teórico que trabalhou inicialmente com tradução bíblica, propôs a distinção entre "equivalência formal" e "equivalência dinâmica" (ou funcional). A equivalência formal busca reproduzir a estrutura do original o mais fielmente possível, mantendo até mesmo a ordem das palavras quando viável. Já a equivalência dinâmica prioriza o efeito no leitor: o objetivo é que o leitor da tradução tenha uma experiência semelhante à do leitor do original, mesmo que isso exija adaptações significativas.

Cada abordagem tem vantagens e limitações. Traduções mais literais tornam o idioma original transparente, permitindo que o leitor perceba estruturas linguísticas diferentes e aprenda sobre a língua de partida. No entanto, podem soar estranhas, artificiais ou até incompreensíveis. Traduções mais livres são geralmente mais fluentes e agradáveis de ler, mas podem ocultar elementos culturais importantes, jogos de palavras e sutilezas do original.

A escolha entre uma abordagem e outra depende de múltiplos fatores: o público-alvo (acadêmico ou geral?), o propósito da tradução (estudo ou entretenimento?), a natureza do texto (poesia ou prosa?) e até mesmo o momento histórico (a primeira tradução de um autor tende a ser mais domesticadora, enquanto retraduções posteriores costumam arriscar mais estrangeirizações).

A Revolução da Transcriação

O conceito de transcriação, desenvolvido por Haroldo de Campos, representa uma terceira via radical nesse debate. Para Campos, a tradução literária – especialmente de poesia – não deve buscar nem literalidade impossível nem adaptação que descaracterize o original. Em vez disso, deve ser uma recriação consciente que leva em conta a materialidade do signo: seus aspectos sonoros, visuais, conceituais e imagéticos.

A transcriação parte do princípio de que o texto literário não é transparente – sua forma é parte indissociável de seu conteúdo. Um poema não é apenas uma mensagem que pode ser "embalada" em diferentes línguas; ele é uma estrutura complexa onde som, ritmo, imagens e significados se entrelaçam de modo único. Traduzir poesia, portanto, é recriar essa arquitetura na língua de chegada, produzindo um texto que funcione como obra autônoma, capaz até de "obliterar" o original em sua própria esfera cultural.

Essa perspectiva revolucionária influenciou gerações de tradutores brasileiros e consolidou a visão do tradutor como criador, não como mero intermediário neutro. A transcriação reconhece abertamente a subjetividade e a criatividade envolvidas no processo tradutório, celebrando-as em vez de tentar escondê-las sob a ilusão de uma suposta objetividade.

Desafios Técnicos e Criativos da Tradução Literária

a book with a candle and a candle on a table
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Marcadores Culturais: Quando as Palavras Carregam Mundos

Um dos maiores desafios enfrentados por qualquer tradutor literário é o tratamento dos chamados "marcadores culturais" – elementos do texto que carregam especificidades da cultura de origem e que podem não ter equivalente direto na cultura de chegada.

Esses marcadores vão muito além de referências óbvias como nomes de comidas típicas ou festividades locais. Eles aparecem em aspectos aparentemente gramaticais, como sistemas de tratamento (o japonês tem múltiplas formas de dizer "você", cada uma com conotações sociais específicas), marcação de gênero (algumas línguas marcam gênero gramaticalmente de formas que outras não marcam), e até mesmo metáforas baseadas em experiências culturais específicas.

Considere a expressão brasileira "fazer das tripas coração". Seu significado – esforçar-se ao máximo, fazer sacrifícios – é claro para brasileiros, mas como traduzi-la? Uma tradução literal para o inglês seria incompreensível. O tradutor poderia optar por uma expressão idiomática inglesa equivalente (domesticação), manter a literal com nota explicativa (estrangeirização), ou encontrar uma solução criativa intermediária.

O desafio se torna ainda maior porque marcadores culturais são fenômenos discursivos, não fatos de dicionário. Eles só se tornam visíveis quando o discurso original incorpora uma diferenciação perceptível para o leitor estrangeiro. O que constitui uma marca cultural depende das referências linguísticas, intertextuais e culturais tanto do tradutor quanto do leitor previsto.

Traduzir Poesia: O Desafio Supremo

Se a tradução literária em geral é complexa, a tradução poética é frequentemente considerada o Everest da profissão. A poesia concentra recursos estilísticos, sonoros e semânticos de tal forma que cada palavra, cada sílaba, cada som pode ser portador de significado.

Roman Jakobson, um dos maiores linguistas do século XX, afirmou provocativamente que "a poesia, por definição, é intraduzível". Ele não queria dizer que é impossível traduzir poesia – queria destacar que a tradução poética exige um processo criativo que vai radicalmente além da transposição literal. É necessário recriar simultaneamente aspectos fonológicos (sons, ritmos, aliterações), semânticos (significados, camadas de sentido), métricos (estrutura de versos) e visuais (disposição do texto na página).

Um exemplo clássico é a tradução de poemas que exploram ambiguidade – quando uma palavra evoca múltiplos significados simultaneamente, e todos esses significados são importantes para a estrutura do poema. Como recriar isso em outra língua, onde a palavra equivalente pode não carregar as mesmas múltiplas conotações?

Octavio Paz propôs que a própria tradução poética seja vista como metáfora do texto original – uma transformação que mantém uma relação de semelhança, mas não de identidade. O tradutor de poesia precisa ser, ele mesmo, um poeta, capaz de sentir e recriar não apenas o que o poema diz, mas como ele ressoa, como ele respira, como ele constrói suas imagens e emoções.

A solução encontrada pelos grandes tradutores de poesia é quase sempre a transcriação: aceitar que não é possível reproduzir tudo e fazer escolhas conscientes sobre o que preservar – às vezes o sentido, às vezes o som, às vezes a estrutura formal, dependendo do que é mais essencial àquele poema específico.

Humor, Jogos de Palavras e o Intraduzível

Traduzir humor é outro desafio técnico notório. O humor frequentemente se baseia em jogos de palavras, trocadilhos, duplos sentidos e referências culturais específicas – elementos que raramente têm equivalente direto em outra língua.

Imagine traduzir uma piada que funciona porque duas palavras soam parecidas em português, mas essas palavras não têm nenhuma semelhança fonética em inglês. Ou considere expressões idiomáticas usadas de forma criativa: em português, alguém poderia dizer "ele não é flor que se cheire" (não é pessoa confiável), e outro personagem responder "mas é espinho que se sente" (mas é pessoa que causa problemas). Como traduzir esse jogo mantendo tanto o humor quanto a imagem botânica?

As estratégias mais comuns incluem: encontrar um jogo de palavras equivalente na língua de chegada (mesmo que seja completamente diferente do original), transformar em um fraseologismo análogo que cumpra função semelhante, usar nota de rodapé explicativa (geralmente indesejável pois quebra o fluxo da leitura), ou compensar a perda em outro ponto do texto, criando um jogo de palavras onde não existia no original para equilibrar a perda inevitável de outro jogo que era intraduzível.

O tradutor literário precisa ser criativo, flexível e, acima de tudo, profundamente conhecedor tanto da língua e cultura de partida quanto da língua e cultura de chegada. Não basta ser bilíngue – é necessário ser "bicultural", entendendo não apenas palavras, mas contextos, referências, sutilezas e até mesmo o que faz as pessoas rirem em cada cultura.

A Invisibilidade do Tradutor: Um Problema Sistêmico

Lawrence Venuti identificou um fenômeno preocupante, especialmente na cultura anglo-americana, mas observável em outras culturas: a "invisibilidade do tradutor". Isso ocorre quando traduções são avaliadas principalmente por sua fluência – quanto mais "natural" soa o texto traduzido, melhor ele é considerado. O paradoxo é que uma "boa" tradução, segundo esse critério, é aquela que não parece tradução, criando a ilusão de que o leitor está diante do texto original.

Essa invisibilidade tem consequências negativas múltiplas. Culturalmente, reforça hegemonias ao domesticar textos estrangeiros, apagando suas diferenças e peculiaridades. Economicamente, reduz a remuneração dos tradutores, tratados como meros prestadores de serviço técnico em vez de coautores. Profissionalmente, impede o reconhecimento adequado desses profissionais, cujo trabalho criativo permanece oculto.

Felizmente, no Brasil há um movimento positivo nesse sentido. Editoras começaram a dar maior destaque aos nomes dos tradutores nas capas dos livros. Leitores mais conscientes buscam traduções específicas de determinados profissionais, desenvolvendo "fidelização" por certas "grifes" de tradução. As redes sociais permitiram que tradutores tenham voz pública, compartilhando bastidores de seu trabalho e educando leitores sobre a complexidade da profissão.

Como observa o tradutor e professor Caetano Galindo: "o tradutor literário é um coautor, ele é autor da pele do texto que você vai receber. Foi ele ou foi ela quem escreveu aquelas palavras". Essa consciência crescente é fundamental para valorizar adequadamente essa profissão essencial.

Questões Éticas: Fidelidade, Autoria e Representatividade

a woman is sitting at a table with a book
a woman is sitting at a table with a book

O Que Significa Ser Fiel?

A noção de fidelidade na tradução é um dos debates mais antigos da história, remontando ao século I a.C., quando o poeta romano Horácio advertia que não se deveria reproduzir textos palavra por palavra. Quatro séculos depois, São Jerônimo, ao traduzir a Bíblia para o latim, recomendava tradução "não de palavra por palavra, mas de sentido por sentido".

Mas fidelidade a quê, exatamente? Ao texto literal? À intenção do autor? Ao efeito sobre o leitor? À cultura de origem? Henri Meschonnic observa que há diferentes tipos de fidelidade possíveis: fidelidade ao conteúdo informacional, fidelidade à criatividade formal, fidelidade à excelência poética, fidelidade às expectativas do leitor. Frequentemente, esses diferentes tipos de fidelidade entram em conflito uns com os outros.

George Steiner argumenta que não existe uma noção única de fidelidade aplicável a todos os textos. Os graus de fidelidade devem ser fixados em cada projeto de tradução específico. Não se pode aplicar a mesma noção de fidelidade para um romance experimental de vanguarda e para um manual técnico, ou entre textos sagrados e contratos comerciais.

Francis Aubert propõe ver a fidelidade como "tentativa" e "compromisso instável" entre tradutor e autor. O tradutor busca sistematicamente "atinar com o que o autor quis dizer", sabendo que essa busca nunca alcançará completamente seu objetivo, mas que sem ela não haveria tradução, apenas discursos paralelos desconectados.

Essa perspectiva reconhece a tradução como processo sempre imperfeito, sempre aproximativo, mas absolutamente necessário. A pergunta não é se a tradução será completamente fiel (isso é impossível), mas quais aspectos da obra merecem prioridade na tentativa de fidelidade.

Quem Pode Traduzir O Quê? O Debate Sobre Representatividade

Recentemente, um debate importante emergiu no campo da tradução literária: a identidade do tradutor deve ser considerada ao decidir quem traduzirá determinada obra?

Essa questão ganhou destaque internacional quando tradutores holandês e catalão foram descartados da tradução dos poemas de Amanda Gorman – jovem poeta negra norte-americana que ganhou fama ao declamar versos na posse do presidente Joe Biden – por não corresponderem ao perfil identitário da autora. A polêmica dividiu opiniões: alguns defenderam que a experiência vivida é fundamental para captar nuances de obras que tratam de racismo, identidade e opressão; outros argumentaram que isso limita a tradução e pode até ser discriminatório contra tradutores.

No Brasil, a tradução dos poemas de Gorman foi confiada à jornalista, poeta e tradutora negra Stephanie Borges, refletindo sensibilidade em relação à representatividade. Mas a questão permanece complexa: tradutores podem "atravessar" experiências que não vivenciaram pessoalmente? Uma tradutora mulher pode traduzir adequadamente um autor homem? Um tradutor branco pode captar as sutilezas de um romance sobre a experiência negra?

Não há respostas fáceis, mas o debate é extremamente importante. Historicamente, o campo da tradução literária foi dominado por homens brancos de classe média, traduzindo obras de todos os tipos. Questionar esse monopólio e buscar maior diversidade entre tradutores pode enriquecer significativamente a qualidade e a sensibilidade das traduções, trazendo perspectivas antes ausentes.

Ao mesmo tempo, é preciso evitar essencialismos que sugiram que apenas pessoas de determinada identidade podem compreender ou traduzir certas experiências. A empatia, a pesquisa cuidadosa e a sensibilidade cultural podem permitir que tradutores atravessem diferenças identitárias, desde que o façam com humildade e consciência de suas próprias limitações.

Oportunidades Profissionais e Mercado de Trabalho

The working environment of the literary translator
The working environment of the literary translator

Quanto Ganha um Tradutor Literário?

A remuneração na tradução literária varia significativamente dependendo de diversos fatores: experiência do profissional, complexidade da obra, prestígio do autor, tamanho do projeto e, especialmente, se o trabalho é para o mercado nacional ou internacional.

No Brasil, o Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA) publica anualmente uma tabela de valores de referência. Para tradução literária, os valores sugeridos são: R$ 0,34 por palavra para tradução de idioma estrangeiro para português, R$ 34 por lauda (aproximadamente 1.400 caracteres com espaços), e R$ 0,45 por palavra para tradução de português para língua estrangeira.

Para ter uma ideia concreta: um romance de 300 páginas tem aproximadamente 75.000 palavras. Traduzido do inglês para o português a R$ 0,34 por palavra, o projeto renderia R$ 25.500. Se o tradutor leva três meses para completar esse trabalho (o que é razoável considerando a necessidade de pesquisa, revisão e refinamento), a remuneração mensal seria cerca de R$ 8.500 – um valor mediano, especialmente considerando que a maioria dos tradutores trabalha como freelancer sem benefícios trabalhistas.

No mercado internacional, as perspectivas melhoram significativamente. Enquanto agências brasileiras pagam de R$ 0,03 a R$ 0,15 por palavra para tradução técnica, agências internacionais de baixo custo oferecem cerca de US$ 0,05 por palavra (aproximadamente R$ 0,25 na cotação atual), e tradutores experientes em nichos especializados podem alcançar US$ 0,15 ou até US$ 0,20 por palavra.

Isso demonstra que o mercado internacional oferece oportunidades mais vantajosas para tradutores brasileiros qualificados. Com domínio avançado de idiomas, especialização em determinados gêneros ou áreas e boa reputação profissional, é possível construir carreira sólida e bem remunerada na tradução literária.

Programas de Apoio e Incentivo à Tradução

O Brasil desenvolveu importantes programas institucionais para fomentar a tradução literária, tanto para internacionalizar a literatura brasileira quanto para facilitar a importação de obras estrangeiras.

O Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, gerido pela Fundação Biblioteca Nacional em parceria com o Ministério da Cultura e o Ministério das Relações Exteriores, foi instituído em 1991 e já traduziu mais de 1.200 livros brasileiros para 45 idiomas diferentes. O programa oferece apoio financeiro de até US$ 10.000 por projeto para editoras estrangeiras interessadas em traduzir e publicar obras de autores brasileiros.

Esse tipo de iniciativa é fundamental para corrigir a assimetria no fluxo internacional de traduções. Embora o Brasil consuma massivamente literatura traduzida do inglês, a literatura brasileira ainda precisa de incentivos para ganhar espaço em mercados estrangeiros, especialmente no anglo-americano, historicamente mais fechado a obras em outras línguas.

A Bolsa Tradução Brazilian Publishers, projeto da Câmara Brasileira do Livro (CBL) em parceria com a Apex-Brasil, também oferece apoio financeiro para editoras estrangeiras traduzirem obras brasileiras, contemplando todos os segmentos: ficção, não-ficção, livros acadêmicos, científicos, técnicos e profissionais.

Nos últimos anos, observa-se crescimento significativo no interesse internacional pela literatura brasileira, impulsionado pela participação do Brasil como país homenageado em diversas feiras literárias internacionais. Autores contemporâneos como Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Eliana Alves Cruz, Itamar Vieira Junior e Jeferson Tenório vêm conquistando leitores em diferentes partes do mundo, abrindo portas para outros escritores nacionais.

Formação e Capacitação: Como se Tornar Tradutor Literário

A formação de tradutores literários no Brasil passou por evolução significativa nas últimas décadas. Hoje existem múltiplos caminhos para quem deseja ingressar nessa carreira.

Diversas universidades brasileiras oferecem cursos de graduação específicos em Tradução, geralmente dentro de faculdades de Letras. Esses cursos combinam estudo aprofundado de idiomas com teoria da tradução, estudos literários e prática tradutória intensiva. Algumas instituições de destaque incluem UnB, UFRGS, PUC-Rio e UNESP.

Para quem já possui graduação em outras áreas, existem programas de pós-graduação especializados. A Universidade de São Paulo (USP) mantém o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (Tradusp), oferecendo cursos gratuitos de mestrado e doutorado com três linhas de pesquisa: Tradução e Corpora, Tradução e Recepção, e Tradução e Poética.

O Programa Formativo para Tradutores Literários, criado em 2013 pela Casa Guilherme de Almeida em cooperação com a Universidade do Livro da Editora Unesp, é outro exemplo consolidado. Com 186 horas-aula, o programa compreende cursos sobre teoria literária e teoria da tradução, oficinas de tradução de prosa e poesia, além de revisão de literatura traduzida.

Mas é importante ressaltar: embora a formação acadêmica seja cada vez mais valorizada, muitos tradutores literários de sucesso são autodidatas ou vieram de outras formações (literatura, linguística, filosofia). O essencial é: domínio profundo de pelo menos duas línguas, ampla bagagem de leitura literária, sensibilidade para nuances linguísticas e disposição para aprender continuamente.

A construção de um portfólio é fundamental. Tradutores iniciantes frequentemente começam oferecendo seus serviços a editoras menores, traduzindo contos para revistas literárias, ou até mesmo fazendo traduções não-remuneradas para construir experiência e reputação. Com o tempo, trabalhos melhores e mais bem pagos vão surgindo, especialmente para quem demonstra qualidade consistente e profissionalismo.

Retradução: Oportunidades com Clássicos Literários

Um nicho interessante dentro da tradução literária é a retradução – a prática de oferecer novas traduções para obras que já foram traduzidas anteriormente. Esse fenômeno é especialmente relevante para clássicos da literatura mundial.

Por que retraduzir? As razões são múltiplas:

Evolução linguística: O português muda com o tempo. Uma tradução feita nos anos 1950 pode soar datada ou artificial para leitores contemporâneos. Novas traduções atualizam a linguagem, tornando os clássicos mais acessíveis.

Revisão crítica: Com o avanço dos estudos literários, novas interpretações das obras surgem. Uma retradução pode refletir essas novas compreensões, oferecendo perspectivas diferentes sobre o texto.

Edições mais confiáveis: Às vezes, novas edições críticas do texto original são publicadas, corrigindo erros ou recuperando trechos perdidos. Isso justifica nova tradução baseada no texto mais confiável.

Diferentes estratégias tradutórias: Enquanto traduções pioneiras tendem a domesticar obras estrangeiras, adaptando-as às expectativas da cultura de chegada, retraduções costumam arriscar mais, preservando elementos estrangeiros e experimentando soluções criativas.

No Brasil, como em outras culturas com mercado editorial robusto, há demanda constante por novas traduções de Shakespeare, Homero, Dante, Cervantes, grandes romancistas do século XIX (Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Dickens) e autores modernos icônicos. Cada geração de tradutores tem a oportunidade de dialogar com esses clássicos, oferecendo sua própria interpretação e recriação.

Para tradutores especializados, a retradução de clássicos representa não apenas oportunidade de trabalho, mas também chance de deixar marca pessoal na história literária. Uma tradução excelente pode se tornar a versão preferida de gerações de leitores, associando permanentemente o nome do tradutor àquela obra.

Tecnologia e IA: Ameaça ou Ferramenta?

O avanço acelerado da inteligência artificial e das ferramentas de tradução automática levanta uma questão inevitável: os tradutores literários serão substituídos por máquinas?

A resposta curta é: não. A resposta longa é: depende de como os tradutores se adaptarem.

Grandes editoras já testaram tradução literária com IA, e os resultados revelam limitações significativas. Embora sistemas de IA generativa consigam resultados razoáveis na tradução de poesia (especialmente na reprodução de esquemas de rimas e formas concretas), ainda apresentam dificuldades sérias com elementos essenciais da literatura.

Pesquisas recentes demonstram que a IA falha em:

  • Captar ironia e sarcasmo: O contexto social e emocional que permite identificar quando um personagem está sendo irônico frequentemente escapa dos algoritmos.

  • Diferenciar tons entre personagens: Cada personagem em um romance tem sua própria voz, seu modo característico de falar. A IA tende a homogeneizar essas vozes, perdendo nuances importantes.

  • Compreender subtextos: Muito do que acontece em literatura não está explícito nas palavras, mas nas entrelinhas. A IA capta apenas o que está na superfície.

  • Preservar jogos de palavras: Trocadilhos e duplos sentidos que dependem de especificidades linguísticas são particularmente difíceis para sistemas automatizados.

  • Respeitar o estilo autoral: O modo único como cada autor usa a linguagem – seu ritmo, suas escolhas vocabulares, sua sintaxe característica – tende a se perder em traduções automatizadas.

A tendência é que ferramentas de IA sejam cada vez mais usadas como auxiliares, não como substitutas. Elas podem acelerar a primeira versão de uma tradução, sugerir alternativas para trechos difíceis, ou ajudar com pesquisa terminológica. Mas o trabalho criativo, sensível e culturalmente informado do tradutor humano permanece insubstituível.

Como dizem especialistas: "Os tradutores não serão substituídos pela inteligência artificial, mas sim pelos tradutores que dominem a IA". Profissionais que aprendem a usar essas ferramentas de modo inteligente e crítico ganham vantagem competitiva, aumentando produtividade sem sacrificar qualidade.

A Internacionalização da Literatura Brasileira

a book with a flag and a book with a flag
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Autores Brasileiros Conquistando o Mundo

Algo notável está acontecendo na literatura brasileira: autores contemporâneos vêm ganhando espaço crescente no mercado internacional, especialmente nos últimos anos.

Conceição Evaristo, com sua poesia e prosa que abordam experiências de mulheres negras no Brasil, tem obras traduzidas para diversos idiomas e ganha reconhecimento crítico internacional. Ailton Krenak, pensador e líder indígena, tornou-se referência mundial em debates sobre meio ambiente, colonialismo e sabedoria ancestral, com livros traduzidos para inglês, francês, espanhol e outras línguas.

Itamar Vieira Junior, vencedor de prêmios literários importantes com "Torto Arado", viu seu romance ser traduzido para mais de 20 idiomas, alcançando sucesso de crítica e público em mercados competitivos como Estados Unidos e França. Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, Jarid Arraes e outros autores contemporâneos também vêm conquistando leitores além das fronteiras brasileiras.

Países como Espanha, China, Colômbia, França, Portugal e Estados Unidos lideram a lista de mercados com maior potencial para autores brasileiros. A presença do Brasil como país homenageado em feiras literárias internacionais tem sido estratégica para aumentar essa visibilidade.

Em 2024, o Brasil foi país homenageado na Feira do Livro de Havana; em 2023, na Feira de Bogotá e Feira de La Paz. Essas participações não são apenas simbólicas – elas resultam em contatos entre editoras, acordos de tradução e interesse renovado pela literatura brasileira.

Autoras como Jarid Arraes destacam a importância de programas que cumpram o papel de representar toda a bibliodiversidade brasileira – não apenas autores do eixo Rio-São Paulo, mas também vozes de diferentes regiões, experiências e perspectivas. A riqueza vocabular existente em diferentes estados do país, as múltiplas experiências culturais que formam o Brasil, tudo isso precisa ser traduzido e compartilhado com o mundo.

Desafios da Assimetria Global

Apesar dos avanços, a literatura brasileira ainda enfrenta desafios significativos para penetrar certos mercados, especialmente o anglófono (Estados Unidos e Reino Unido).

O mercado editorial anglo-americano é notoriamente fechado para traduções. Enquanto países europeus como França, Alemanha e Itália têm entre 25% e 40% de suas publicações compostas por traduções, nos Estados Unidos esse número mal chega a 3%. Isso reflete não apenas questões comerciais, mas também certa arrogância cultural de países hegemônicos que assumem que o melhor da literatura mundial já está sendo escrito em inglês.

Para a literatura brasileira, isso representa barreira dupla: além de competir com autores de língua inglesa, precisa competir com literatura de outras línguas mais "prestigiadas" internacionalmente, como francês, alemão e espanhol. O português, apesar de ser a sexta língua mais falada no mundo, não tem o mesmo prestígio cultural dessas línguas no cenário internacional.

No entanto, há sinais de mudança. Editoras independentes norte-americanas e britânicas têm se mostrado mais abertas a literatura traduzida, especialmente de autores não-brancos e de países do chamado "Sul Global". Programas de apoio à tradução, tanto do governo brasileiro quanto de instituições internacionais, ajudam a tornar financeiramente viável a publicação de autores brasileiros no exterior.

A solução passa por estratégia múltipla: continuar investindo em qualidade literária, fortalecer programas de apoio à tradução, promover a presença brasileira em eventos internacionais, e construir redes de contato entre editoras, agentes literários e tradutores em diferentes países.

Casos Polêmicos e Debates Contemporâneos

Painting portrait of Machado de Assis by Henrique Bernardelli showing the author seated in a formal
Painting portrait of Machado de Assis by Henrique Bernardelli showing the author seated in a formal

A Controvérsia da "Facilitação" de Clássicos

Um dos debates mais acalorados na história recente da tradução brasileira envolveu uma proposta controversa: "traduzir" ou "facilitar" obras de Machado de Assis e José de Alencar, substituindo palavras consideradas "difíceis" por sinônimos mais simples para tornar os clássicos mais palatáveis aos jovens leitores.

O projeto, proposto pela escritora Patricia Engel Secco com apoio inicial do Ministério da Cultura, gerou reação fortemente negativa de especialistas, acadêmicos e leitores. O principal argumento contra era que alterar o texto sob pretexto de facilitá-lo desvirtua a integridade da obra, podendo até alterar significados.

A questão envolve direitos autorais, especificamente o artigo 24 da Lei 9.610/98, que garante ao autor (e a seus herdeiros) o direito de "opor-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra". Mesmo obras em domínio público, cujos direitos patrimoniais expiraram, mantêm proteção dos direitos morais.

Críticos argumentaram que a proposta subestimava a inteligência dos jovens leitores e representava solução equivocada para problemas reais de educação literária. Em vez de "facilitar" Machado de Assis, seria mais produtivo investir em formação de professores, contextualização histórica adequada e incentivo à leitura desde cedo.

O debate revelou tensões sobre como lidar com clássicos literários em contexto educacional: devemos preservá-los integralmente, aceitando que são textos desafiadores? Ou adaptá-los para torná-los mais acessíveis, correndo o risco de descaracterizá-los? Não há respostas fáceis, mas o consenso é que alterações em obras consagradas devem ser feitas com extremo cuidado, transparência e respeito ao texto original.

Polêmica Amanda Gorman: Identidade e Tradução

Outro debate que sacudiu o mundo da tradução literária aconteceu em 2021, envolvendo a tradução dos poemas de Amanda Gorman, jovem poeta negra norte-americana que ganhou fama ao declamar "The Hill We Climb" na posse do presidente Joe Biden.

Quando editoras europeias começaram a planejar traduções dos poemas, surgiu controvérsia: tradutores inicialmente escolhidos na Holanda e na Catalunha foram descartados por não corresponderem ao perfil da poeta – ambos eram homens brancos, enquanto Gorman é uma jovem mulher negra cujos poemas abordam questões raciais, identidade e experiências de opressão.

O debate dividiu opiniões apaixonadas:

Favoráveis à mudança argumentavam que experiências vividas são fundamentais para captar nuances de obras que tratam de racismo e identidade. Um tradutor branco, por mais competente que seja linguisticamente, pode não perceber sutilezas ou ter sensibilidade adequada para lidar com certas questões raciais.

Contrários à mudança argumentavam que isso estabelece precedente perigoso, limitando a tradução e potencialmente sendo discriminatório. Se tradutores só podem traduzir obras de autores com mesma identidade, isso não restringe severamente o campo da tradução? Um tradutor japonês só poderia traduzir autores japoneses? Uma tradutora mulher só poderia traduzir autoras mulheres?

No Brasil, a tradução foi confiada a Stephanie Borges, jornalista, poeta e tradutora negra, refletindo sensibilidade em relação à representatividade. A decisão foi geralmente bem recebida, mas o debate mais amplo permanece.

Talvez a questão não seja estabelecer regras rígidas, mas sim promover consciência. Historicamente, o campo da tradução foi dominado por pessoas de perfis específicos (geralmente homens brancos de classe média educada). Questionar esse monopólio e buscar maior diversidade pode enriquecer significativamente a qualidade das traduções, trazendo perspectivas antes ausentes. Ao mesmo tempo, é importante não cair em essencialismos que sugiram que apenas pessoas de determinada identidade podem compreender certas experiências.

Direitos, Proteção Legal e Mercado Editorial

a statue of a lady justice justice and justice
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O Tradutor Como Autor: Proteção Legal

A legislação brasileira reconhece explicitamente as traduções literárias como obras artísticas originais. A Lei 9.610/98 garante aos tradutores direitos morais e patrimoniais sobre seu trabalho, uma proteção fundamental mas nem sempre respeitada na prática.

De acordo com a Convenção de Berna para Proteção das Obras Literárias e Artísticas, assinada por 164 nações, "traduções de uma obra literária ou artística serão protegidas como obras originais, sem prejuízo dos direitos autorais da obra original". Isso significa que a tradução é simultaneamente uma obra derivada (depende do original) e uma criação independente (tem seu próprio autor e proteção).

Os tradutores têm direitos morais inalienáveis sobre suas traduções:

  • Direito de paternidade: Ter seu nome citado ao lado do autor original em todas as publicações da tradução.

  • Direito à integridade: Opor-se a modificações na tradução que possam prejudicá-la ou prejudicar sua reputação profissional.

  • Direito de retirada: Em certas circunstâncias, retirar a obra de circulação (embora isso seja raro na prática).

Os tradutores também têm direitos patrimoniais, que podem ceder a editores em troca de remuneração. A negociação desses direitos é complexa e envolve questões como:

  • Pagamento único versus royalties: Muitos tradutores recebem pagamento único pelo trabalho, mas alguns conseguem negociar porcentagem sobre vendas.

  • Direitos territoriais: A tradução pode ser licenciada para diferentes territórios separadamente.

  • Diferentes formatos: Edição impressa, e-book, audiobook podem ter licenças separadas.

  • Reedições: O que acontece se a obra for reeditada? O tradutor deve receber pagamento adicional?

Na prática, editoras geralmente têm poder de negociação muito maior que tradutores individuais, o que pode resultar em contratos desfavoráveis. A organização de tradutores em sindicatos e associações tem sido fundamental para estabelecer parâmetros mínimos de remuneração e proteção de direitos.

Desafios Contratuais e Valorização Profissional

Apesar da proteção legal, tradutores literários enfrentam desafios significativos relacionados a contratos e reconhecimento profissional.

Um problema recorrente é a invisibilidade contratual: muitos contratos não especificam claramente os direitos do tradutor, ou incluem cláusulas abusivas que cedem todos os direitos ao editor sem compensação adequada. Tradutores iniciantes, ansiosos por construir portfólio, podem aceitar condições desfavoráveis que depois se tornam prejudiciais.

Outro desafio é a falta de padronização na remuneração. Enquanto o SINTRA publica tabelas de referência, elas não têm força legal obrigatória. Na prática, editoras negociam individualmente com tradutores, e os valores podem variar enormemente dependendo de fatores como urgência do projeto, prestígio do autor, tamanho da editora e experiência do tradutor.

A questão dos royalties é particularmente controversa. Enquanto autores originais frequentemente recebem porcentagem sobre vendas, tradutores geralmente recebem apenas pagamento fixo inicial. Se um livro se torna best-seller, vendendo milhares de exemplares, o tradutor não se beneficia proporcionalmente de seu trabalho. Alguns tradutores conseguem negociar royalties, mas isso ainda é exceção, não regra.

Há também assimetria curiosa: tradutores podem vender direitos da tradução que criaram, mas não podem comprar direitos de tradução. Se um tradutor deseja traduzir determinada obra, não pode simplesmente comprar esses direitos do detentor original – precisa ser contratado por uma editora que adquiriu os direitos de publicação. Isso reflete práticas consolidadas de mercado, mas limita a autonomia dos tradutores.

A mobilização da categoria através de associações profissionais, sindicatos e redes sociais tem sido fundamental para questionar essas práticas e lutar por melhores condições. Leitores mais conscientes também ajudam ao valorizar traduções de qualidade e pressionar editoras a reconhecer adequadamente esses profissionais.

Perguntas Frequentes Sobre Tradução Literária

a book with a question mark mark, who is the most important to this image
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1. Qual a diferença entre tradução literária e tradução técnica?

A tradução técnica trabalha com textos informativos (manuais, contratos, artigos científicos) onde a clareza e precisão terminológica são absolutas. A tradução literária lida com a dimensão estética da linguagem, onde o modo de dizer é tão importante quanto o que é dito. O tradutor literário precisa preservar estilo, voz narrativa, recursos retóricos e camadas de significado, exigindo sensibilidade artística além de competência linguística.

2. É possível viver apenas de tradução literária no Brasil?

Sim, mas é desafiador, especialmente no início da carreira. A maioria dos tradutores literários combina esse trabalho com outras atividades (tradução técnica, ensino, revisão) até construir reputação e portfólio suficientes. Tradutores experientes e especializados, especialmente aqueles que trabalham para o mercado internacional, conseguem remuneração mais confortável. A profissão exige disciplina, qualidade consistente e construção gradual de relacionamentos com editoras.

3. Preciso ter diploma específico para ser tradutor literário?

Não é obrigatório, mas formação acadêmica sólida ajuda muito. Cursos de graduação e pós-graduação em Tradução, Letras ou áreas afins fornecem base teórica importante e oportunidades de prática supervisionada. No entanto, muitos tradutores literários de sucesso são autodidatas ou vieram de outras formações. O essencial é domínio profundo de idiomas, ampla bagagem de leitura literária e capacidade de escrever bem na língua de chegada.

4. Quantos idiomas preciso dominar?

Para começar, dois: sua língua materna (na qual você escreve) e pelo menos uma língua estrangeira de alto nível. A maioria dos tradutores literários trabalha traduzindo de línguas estrangeiras para sua língua nativa, pois é extremamente difícil escrever literatura de qualidade em língua que não é sua primeira. Dominar múltiplos idiomas estrangeiros amplia oportunidades, mas é melhor ter domínio excelente de uma língua do que conhecimento superficial de várias.

5. Tradução literária será substituída por inteligência artificial?

Não no futuro próximo. Embora ferramentas de IA estejam avançando rapidamente, elas ainda falham em elementos essenciais da literatura: ironia, subtexto, diferenciação de vozes entre personagens, jogos de palavras, e preservação de estilo autoral. A IA pode ser ferramenta auxiliar útil, mas o trabalho criativo, culturalmente informado e sensível do tradutor humano permanece insubstituível. O futuro pertence a tradutores que saibam usar IA inteligentemente, não a tradutores que a ignorem nem a máquinas operando sozinhas.

6. Como construir portfólio começando do zero?

Comece traduzindo contos curtos para revistas literárias (muitas publicam traduções), ofereça serviços a editoras menores ou independentes, participe de oficinas de tradução, faça traduções de textos disponíveis online e compartilhe nas redes sociais (respeitando direitos autorais). Alguns tradutores começam fazendo versões não oficiais de obras ainda não traduzidas, usando-as como amostra de trabalho. O importante é demonstrar qualidade e profissionalismo consistentes.

7. Posso traduzir qualquer livro que eu queira?

Não exatamente. Para traduzir e publicar uma obra, é necessário que uma editora adquira os direitos de tradução junto ao detentor dos direitos originais (autor ou editora estrangeira). Como tradutor individual, você não pode simplesmente comprar esses direitos e publicar a tradução – precisa ser contratado por uma editora que já adquiriu ou pretende adquirir esses direitos. No entanto, você pode traduzir obras para fins de estudo pessoal ou para construir portfólio (sem publicação comercial).

8. Quanto tempo leva para traduzir um livro?

Varia enormemente dependendo da complexidade da obra, extensão e experiência do tradutor. Um romance de 300 páginas pode levar de 2 a 6 meses em média. Textos mais densos (poesia, prosa experimental, clássicos) exigem mais tempo. Tradutores experientes podem ser mais rápidos, mas qualidade não deve ser sacrificada por velocidade. É preciso tempo para pesquisa, múltiplas revisões e refinamento.

9. O que é retradução e por que é importante?

Retradução é criar nova tradução de obra já traduzida anteriormente. É importante porque: línguas evoluem (traduções antigas podem soar datadas), interpretações críticas mudam com o tempo, edições mais confiáveis do original surgem, e diferentes tradutores oferecem perspectivas únicas. Clássicos literários são regularmente retraduzidos, permitindo que cada geração dialogue com essas obras através de sensibilidades contemporâneas.

10. Tradutores recebem royalties ou apenas pagamento fixo?

A maioria dos tradutores literários no Brasil recebe apenas pagamento fixo inicial, calculado por lauda ou por palavra. Alguns tradutores experientes ou com poder de negociação conseguem incluir royalties nos contratos, recebendo porcentagem sobre vendas, mas isso ainda é exceção. A luta por royalties para tradutores é uma das principais reivindicações da categoria, pois permitiria que tradutores se beneficiassem do sucesso de obras que ajudaram a criar.

Conclusão: A Ponte Invisível Entre Mundos

foto da personagem amy pond da serie doctor who lendo um livro dentro da tardis
foto da personagem amy pond da serie doctor who lendo um livro dentro da tardis

Chegamos ao fim desta jornada pelos bastidores da tradução literária, mas na verdade, estamos apenas no começo de compreender a complexidade e a beleza desse ofício que raramente recebe os holofotes que merece.

A tradução literária é muito mais do que transposição mecânica de palavras entre idiomas. É arte que exige criatividade, técnica que demanda conhecimento profundo, mediação cultural que requer sensibilidade e ética que envolve responsabilidade. É trabalho simultaneamente humilde e grandioso: humilde porque serve a outro texto, a outra voz; grandioso porque permite que essa voz seja ouvida em territórios e línguas que o autor original jamais alcançaria sozinho.

Sem tradutores literários, nossa experiência com a literatura mundial seria drasticamente empobrecida. Não teríamos acesso a Shakespeare, Dostoiévski, García Márquez, Toni Morrison, Haruki Murakami ou incontáveis outros autores que moldaram nossa compreensão do que significa ser humano. Estaríamos presos às fronteiras de nossa própria língua, isolados culturalmente, privados de vozes que nos desafiam, emocionam e transformam.

Os desafios que esses profissionais enfrentam são imensos: desde questões técnicas complexas (como traduzir jogos de palavras intraduzíveis?) até dilemas éticos profundos (a quem devemos fidelidade?), passando por questões práticas de mercado (como viver dignamente desse trabalho?). Mas as oportunidades também se multiplicam: mercados internacionais mais acessíveis, programas institucionais de fomento, ferramentas tecnológicas que auxiliam (sem substituir) o trabalho humano, e reconhecimento crescente do tradutor como coautor essencial.

Para quem se interessa por literatura, desenvolver consciência sobre tradução enriquece enormemente a experiência de leitura. Passar a perceber a "pele do texto" – as palavras específicas escolhidas pelo tradutor, as soluções criativas para passagens difíceis, as diferentes vozes que diferentes tradutores dão à mesma obra – abre nova dimensão de apreciação literária.

Para quem considera seguir carreira na tradução literária, a mensagem é encorajadora: é profissão desafiadora mas profundamente gratificante, que combina amor pela linguagem, curiosidade cultural e criatividade artística. Exige dedicação, estudo contínuo e paciência para construir reputação, mas oferece a recompensa única de participar ativamente na circulação global de ideias e beleza.

A tradução literária não é apenas ponte entre línguas – é espaço privilegiado de encontro entre culturas, diálogo entre tradições e renovação constante dos repertórios literários. Num mundo cada vez mais interconectado, mas também marcado por tensões identitárias e políticas, o trabalho do tradutor literário torna-se ainda mais relevante.

É ele quem permite que vozes diversas sejam ouvidas além de suas fronteiras linguísticas originais. É ele quem torna possível que um leitor em São Paulo compreenda a experiência de um escritor em Tóquio, que um leitor em Lisboa se emocione com a história contada por um autor em Lagos, que culturas distantes dialoguem através de páginas traduzidas.

Como observou o poeta mexicano Octavio Paz: "Aprender a falar é aprender a traduzir". A tradução literária, nesse sentido, é a forma mais elevada dessa capacidade humana fundamental de construir pontes, de encontrar equivalências onde parecia haver apenas diferenças, de transformar o estrangeiro em familiar sem apagar sua estrangeiridade essencial.

Que possamos valorizar cada vez mais esses artistas invisíveis, esses coautores essenciais, esses construtores de pontes que conectam culturas e enriquecem nossa experiência coletiva com a literatura. Cada livro traduzido que lemos é testemunho de seu trabalho criativo – e cabe a nós reconhecer, celebrar e apoiar essa arte que nos torna mais cosmopolitas, empáticos e humanos.

imagem do escritor e poeta brasileiro sebastião victor diniz
imagem do escritor e poeta brasileiro sebastião victor diniz

Escrito por: Sebastião Victor Diniz

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